sábado, 3 de outubro de 2009

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Limite Mário Peixto

Este post é uma homenagem a Mário Peixoto, o cineasta que produziu esta obra prima em 1931, super elogiada por, entre outros Orson Welles; e que deixou seguidores sim, no nosso cinema temos Júlio Bressane que fecharia "um ciclo pelo qual o Cinema Moderno brasileiro reencontra experiências derivadas das vanguardas históricas de 1920/30 tal como os cineastas modernos europeus mais radicais"- as aspas são palavras de ninguém mais ninguém menos que Ismail Xavier.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Zoetrope: All-Story

Zoetrope: All-Story é uma revista literária americana que foi lançada em 1997 por Francis Ford Coppola. Fruto do Francis Coppola`s “Crazy Idea Depatment”, algo como “Departamento de Idéias Malucas” de Francis Copolla, All-Story está empenhada em exibir as mais promissoras vozes de contos de ficção. All-Story reflete o objetivo de Francis Copolla em “formar uma ampla ponte para os contadores de histórias, encorajando-os a trabalhar no formato natural de um conto.” Em sua curta história de vida, Zoetrope: All-Story recebeu todos os grandes prêmios para contos, incluindo o National Magazine Award para Ficção.
O conto cuja tradução feita por mim segue abaixo está impresso em um livro com uma reunião dos melhores contos desta revista da editora argentina EMECÉ e portanto foi traduzido do castelhano, ainda não tive acesso ao original em Inglês.
Antes de publicá-la gostaria de vos deixar algumas notas que usualmente são de rodapé, mas minha quase absoluta incompetência com o editor de texto Word 2007 não me permitiu pô-las devidamente:
1st: Logo ao início do conto Warren David Warren vai dizer, "Quem pensavam que era, Trollope?", pois bem Trollope foi um novelista Inglês do início do século XIX altamente prolífico, teve inclusive fans célebres, entre eles, inclusive, um nobre que não conseguia viajar sem uma novela de Anthony Trollope.
2nd- L`esprit de l`escalier, expressão francesa que quer dizer "A boa resposta que chega tarde demais".
3rd- McGuffin- expressão popularizada por Alfred Hitchcock, trata-se de uma desculpa argumentativa que se bem que não tenha nenhum valor intrínseco, serve para que em uma história de ficção buscas e perseguições sejam acionadas, que em teoria giram em torno do argumento desta desculpa; O Falcão Maltês da obra homônima- por ventura já viram este clássico com Humphrey Bogart?...é um caso clássico de McGuffin.
Perdoem me o comportamento Lamer, e vamos agora ao conto:

ZOETROPE- ALL STORY
A fábrica de sonhos de Francis Ford Coppola.
Apequenando a Manada
Peter Lefcourt
__Sim, passei os vomitando, qual trocinhos de coelho. Quem pensavam que era? Trollope? Deveriam dar-me uma medalha em vez de me prender. Não acha?
Assenti imperceptivelmente, temia enfurecê-lo ainda mais. Haviam me advertido de sua tendência a repentinos ataques de fúria. Esta manhã haviam-lhe administrado uma nova medicação no intuito de aplacar suas mudanças de temperamento.
Estávamos sentados no solar da casa de visitas do Hospital estadual Camarillo para dementes criminosos, cara a cara numa mesa de fórmica verde sob os olhos vazios de um guarda armado. A sala fedia a Haloperidol e desinfetante. Eu estava ali há quarenta minutos e havia enchido duas fitas no meu micro-gravador Panasonic.
Foi sua médica, uma psiquiatra de nome Rayna Midori que havia chegado há pouco de Bombaim, quem havia decidido que falar com um escritor poderia ser terapêutico. Seu advogado, designado pelo tribunal, outorgou a permissão com a cláusula de que eu não publicaria nada até se esgotarem todas as instâncias de apelação.
__ Isso poderia levar até vinte anos- eu disse.
__Sinceramente duvido disso- respondeu o advogado, com um tom de voz que denotava com precisão a confiança que tinha em seu caso.
De qualquer modo eu não tinha pressa em publicar. Não tinha fixado um prazo. Nem sequer tinha uma encomenda. O que tinha era a curiosidade de averiguar o que havia motivado um programador de computadores de Culver City, de quarenta e seis anos de idade, a assassinar cinco escritores em cinco terças-feiras sucessivas nos finais do verão e inícios do outono de 1993.
Warren David Warren, a quem os periódicos sensacionalistas haviam apelidado de “o assassino de escritores”, “o filho de Shakespeare” etc, havia me escolhido para contar sua história em meio a uma longa fila de candidatos para esse trabalho. Jamais me explicou, nem a outra pessoa, por que me escolhera, e quando fiz a pergunta a Warren em nossa primeira entrevista ele disse, simplesmente:
___ Você estava atrás o suficiente na lista.
Eu jamais averiguara com exatidão o quão atrás eu estava na lista, mas não pude deixar de me perguntar. Estaria eu antes ou depois de Updike? John Irving?Anne Tyler? Sem dúvida essas pessoas mereciam-no mais que eu, dada a premissa básica dada por Warren:
__ Limitei-me a apequenar a manada- disse.
Bebeu um gole de café de um copo descartável e se instalou o mais confortavelmente que pôde na incômoda cadeira de plástico moldado.
__ Era uma questão de ecologia. Compreende?
Assenti, com cuidado, com delicadeza.
__Onde quer que se vá-continuou, com voz modulada e absolutamente desprovida de sentimento-, alguém está sempre escrevendo algo. Tua cunhada, teu contador, até teu jardineiro. Todos os que assistem às aulas de escrita estão trabalhando em novelas, enviando resumos e capítulos de amostra aos editores. Dia após dia o rebanho se torna cada vez maior, vão comendo toda a pastagem, desmatando a paisagem, que logo vai secar por completo. E depois o que?- aqui ele se deteve e me olhou em busca de uma confirmação, que assenti com um gesto discreto. Entretanto, foi nesta mesma noite, quando estava em casa transcrevendo a entrevista, que pude ser capaz de admitir a mim mesmo que Warren David Warren me havia mostrado sentimentos aos quais eu era totalmente alheio.
No dia seguinte me descreveu uma visão que tinha uma inquietante similaridade com um de meus próprios pesadelos recorrentes.
__É como num depósito de Palmdale – disse- dois mil macacos estão conectados aos computadores, e cada vez que digitam uma página lhes dão uma banana, e logo recolhem essas páginas e as reordenam em amostras ao acaso, que são indiscriminadamente enviadas às editoras.
No meu pesadelo particular havia estudantes de todas as escolas de redação de todas as partes conectados a um tomógrafo cerebral em linha e, à noite, enquanto dormiam, os conteúdos de seus cérebros eram descarregados automaticamente nos discos rígidos das editoras. De manhã, as editoras enviavam cheques às contas dos graduados das escolas de redação.
__No que me diz respeito- explicou Warren-, Jamison era o macaco principal. Seus livros estavam nas listas dos mais vendidos por quarenta, cinqüenta semanas seguidas. Nem sequer se podia ir a um supermercado sem ver exemplares de vinte cores distintas de seu último livro a te encarar desde o posto de saída junto com o jornal do dia.
Murray Jamison havia sido estrangulado com o cabo que conectava sua impressora ao computador em 31 de agosto de 1993, enquanto estava a trabalhar com as provas de sua décima quinta novela, publicação póstuma que já havia alcançado a quadragésima oitava edição no formato livro de bolso.
Foi informado que o homicida havia entrado através da praia na casa que Jamison tinha em San Clemente, usando a via de acesso público obrigatório para chegar até o condomínio fechado. Essa revelação reativou a polêmica sobre o acesso público às praias da Califórnia. A viúva de Jamison apareceu na TV para sustentar que seu marido ainda estaria vivo se não houvesse o acesso público.
__Ela não sabia o que estava falando-afirmou Warren-. Entrei diretamente pela frente. Havia um eucalipto ao lado da parede. Sua casa apareceu em Estilos de Vida de Ricos e Famosos. Eu congelei a imagem em meu vídeo cassete, ampliei-a mediante o dispositivo de escaneamento digital, e li o número.
“Enquanto estava desconectando o cabo lhe disse o que pensava de O Comerciante de Peles. Inclusive no Times lhe fizeram uma boa crítica. Disseram que era um Jamison em sua melhor safra. Melhor safra de baba de macaco, isso sim. Li o livro em pé na livraria Barnes & Noble.
Na terça seguinte, quando foi encontrada uma segunda escritora morta em Century City, a polícia não fez nenhuma conexão imediata com Jamison. Vera Vruma fora atirada da janela de seu apartamento de uma mansarda, e ficou espatifada no teto, na unidade de calefação e ar condicionado do edifício, Próximo ao Pico Boulevard. Era uma visão nada agradável. Uma repórter de uma das equipes móveis do noticiário das onze vomitou seus biscoitinhos na camionete antes dar o informe de pé, pálida e tremendo, ao lado do perfil do marcador, manchado com o sangue do corpo. Ainda que não houvesse bilhete, a suposição inicial fora de suicídio.
Vruma escrevia trilhers eróticos sobre mulheres complexas com vagas ânsias bissexuais. Dois de seus livros haviam sido adaptados a películas de grande apelo popular e o terceiro estava já estava pronto para ser filmado.
__Não passava de literatura pornô- disse Warren David Warren-. Só porque usava ponto e vírgula todos a consideravam uma Anais Nin.
A polícia continuava a não acreditar que Vera Vruma fora assassinada até que o cadáver de Lorenzo de La Civita emergiu do fundo do lago do reservatório de Hollywood em uma sexta à noite, dez dias mais tarde. O forense determinou que o homicídio fora consumado 3 dias antes, numa terça por volta da noite ; aconteceu que foi exatamente uma semana depois que Vera Vruma dera seu involuntário mergulho e duas semanas após a interrupção do abastecimento de ar para Murray Jamison em seu estúdio de San Clemente.
Na verdade, não foi a polícia, mas sim uma jornalista do Hard Copy, uma jovem oriental de olhos amendoados chamada Lilian Woo a primeira a especular em público a conexão entre os três escritores mortos. Ela foi ao ar em um plantão espetacular intitulado: “O assassino de escritores está a solta: terror na máquina de escrever.”
__Eu me perguntava por que demoravam tanto- disse-me Warren David Warren-. Já estava perdendo todo o conceito. Há tantos homicídios ao acaso em Los Angeles que as pessoas demoram muito em estabelecer o elo. A questão é que até essa jornalista do Hard Copy com sua história, não poderiam me apanhar.
“La Civita poderia ter sido o primeiro de minha lista, mas guardei para terceiro porque ninguém o levava a sério. O Times sequer comentava seus livros. Sabia que A Travessia sem Ventos d`Alma esteve na lista de não ficção em capa dura cento e cinqüenta e nove semanas consecutivas? Quero dizer, alguma vez você o leu?
Sacudi a cabeça.
__Esse homem deveria ter sido declarado um risco para a saúde pública anos antes d`eu matá-lo. O apanhei enquanto fazia exercícios físicos em volta do lago, ao entardecer. O golpeei com uma escultura de jardim de cimento, depois o amarrei e o despachei para o fundo do lago. Li em algum lugar que tem trinta metros de profundidade. Se eu o tivesse atado melhor não apareceria em vários anos. Isso sim é uma travessia sem vento...
Para ser totalmente franco, eu não havia chorado Lorenzo La Civita. Estou certo de não ter sido o único escritor que lançou um furtivo suspiro de satisfação antecipando o espaço vazio da vitrine da livraria depois de sua saída do ofício.
Mas admito que de todo modo senti um nó nos nervos de meu estômago quando a jornalista de Hard Copy fez sua matéria sobre o “Filho de Shakespeare”.Três homicídios. Três escritores de êxito. Embora ainda faltassem um ou dois homicídios para nos certificarmos de que se tratava de um serial killer, as coisas estavam tomando essa tendência.
Recordo-me de que na terça seguinte acordei com um pequeno e duro nó nos nervos do estômago. Lembro-me do fato d`eu ter me lembrado que era terça feira. Lembro-me que tratei de me acalmar com a idéia de que eu não era um autor de êxito. Muito pelo contrário.
Fiz meus exercícios matinais e deixei que a rotina do dia me tranqüilizasse. Continuei calmo, entorpecido pelo cotidiano. Escrevi minhas cinco páginas, tomei um Martini com o almoço, dormi uma pequena sesta, e depois cometi o erro de ligar a televisão.
Barb Papilla, a ardente latina que conduzia o noticiário da tarde do canal Nove, anunciou que um quarto escritor havia esticado as canelas.
Como que antecipando minha sensação de segurança, desta vez Warren David Warren havia escolhido um autor de segundo nível. Xavier Dionne, um novelista franco-canadense, havia escrito uma novela de suspense sobre o homicídio de um notório político separatista de Romouski. Cul de Sac, ou Dead End na tradução para o Inglês, não teve uma boa acolhida da crítica, e seu editor estava tratando de contra atacar a morna recepção com uma visita a doze cidades.
__Apanhei Dionne logo após sua aparição em Bom Dia Los Angeles,- contou me Warren, agora menos na defensiva senão diretamente aberto comigo.
- O haviam alojado no Holiday Inn de Highland. Que editor tacanho. A Joyce Carol Oates não haviam mandado ao Holiday Inn. Consegui o número de seu quarto pelo telefone e logo me colei e fui me esconder atrás do cartaz enquanto a camareira saía para buscar mais toalhas.
“Quando ele entrou pela porta e meu viu ali sentado com exemplar de seu livro na mão me disse: ´ sinto muito, mas a sessão de autógrafos é em Bretamos às onze `. Como nada lhe disse, me perguntou quem era.
“O que eu deveria ter dito era que eu era o anjo da morte que estava ali para despachá-lo. Mas só me ocorreu naquele momento L`esprit de l`escalier.
“Em troca, li uma passagem de seu livro- um longo e redundante parágrafo, escrito de maneira pomposa, um de muitos- e lhe perguntei como era possível que estivesse escrito aquilo.
“Durante um momento não disse nada. Ficou ali de pé, com expressão ferida. E então, agora a coisa começou a ficar interessante, começou a se defender. Disse que era uma tradução ruim. Esse homem tinha menos de um minuto de vida e estava a por a culpa no tradutor.
“Usei uma bereta de 9mm com silenciador. Dei um tiro justamente em sua laringe. Depois peguei um exemplar de Dead End,encontrei o ilustre parágrafo, e o deixei a seu lado aberto naquela página.
Na quarta à noite Lilian Wong levou uma equipe de cinegrafistas ao quarto do Holiday Inn. O parágrafo em questão foi graficamente impresso na tela durante a filmagem da cena do crime. Causou sensação. Houve debates sobre os méritos literários do parágrafo e discussões se os escritores deveriam pagar o preço supremo por escreverem mal.
Mas acima de tudo havia medo.Todos nos perguntávamos quem seria o próximo da lista do “Assassino de escritores”. Os autores tomaram precauções. Contrataram seguranças. Alguns, inclusive, saíram da cidade.
__Não há dúvidas de que obtive uma boa cobertura da imprensa depois de Dionne- disse Warren.
__ Já era hora. Mas ainda não falavam da questão principal. Ninguém falava da necessidade de se diminuir o rebanho. Por isso enviei a carta ao Times.
A carta ao diretor enviada por Warren foi estudada por experts forenses do departamento de Polícia de Los Angeles antes que a publicassem na edição de segunda feira do Los Angeles Times. Nela estava exposto o “desequilíbrio ecológico” causado pelo “crescimento exponencial” do número de escritores no mundo. Explicava que ele não tinha nada de pessoal contra os escritores, que ele mesmo era escritor, ainda que não reconhecido, mas que ante a ausência de auto-disciplina ou de forças darwinianas adequadas que entram no jogo, e o problema apenas piorava. A culpa era dos computadores, das escolas de redação- às quais chamava “uma nefasta indústria camponesa”- e do mau gosto da indústria editorial. Não passará muito tempo, predizia, até que uma lei Grisham de Literatura inunde tudo com má literatura e acabe com a boa do mercado.
__Na verdade fiquei nauseado-disse Warren- quando todos estes psicólogos idiotas começaram a aparecer no Larry King com minha carta tagarelando sobre essa baixeza do serial killler. Pensavam que eu era alguma espécie de demente que matava escritores porque não tinha nada melhor pra fazer.
“E depois, quando começaram a dizer que eu escolhia as terças porque era o dia em que me havia ocorrido algo de traumático...Quero dizer, vamos...
__Por que escolheu as terças?
Olhou-me qual um mestre de escola olha um aluno de destaque que faz uma pergunta cuja resposta já sabia se tivesse prestado atenção.
__Pensei que tivesse dado conta.
__Na verdade dei conta. Todo esse lance de ecologia. A teoria Neo-malthusiana e tudo o mais. Mas só não entendo porque não poderia diminuir o rebanho nas segundas ou quartas, por exemplo.
Sorriu, não era um sorriso muito atraente. Haviam-lhe feito extenso tratamento na clínica dental do cárcere e ele estava a exibir um monte de prata amalgamada. Logo se inclinou para frente, fora do alcance auditivo do guarda e sussurrou algo que me soou como “Egg McMuffim”.
Minha cara deve ter aparentado expressão de desconcerto já que ele se pôs a levantar a voz:
__Significa algo que na realidade não é. Não compreende? Como o Falcão Maltês. Esse filme não é sobre uma ave empalhada. É sobre a condição humana, por Deus.
Quando começou a gritar e cuspir, a guarda fez com que a segurança própria do manicômio o levasse vestido em camisa de força, inclusive quando protestei dizendo que ele não me faria dano algum.
Me levantei às quatro da manhã, completamente desperto, e me dei conta de que a palavra que ele estava tentando me dizer era “McGuffin”. Então a terça feira era um McGuffin. Grandioso. Descobrira a resposta que nenhuma outra pessoa pode averiguar durante o julgamento ou depois. Mas isso não me deixou mais feliz.
Sabem, eu precisava desesperadamente era um lunático e não darwiniano literato revisionista, como sustentava ser. As implicações de sua última teoria eram impensáveis para alguém cujo último livro havia vendido 1.124exemplares. Francamente, estou surpreso de não ter figurado em posto mais alto na hierarquia de êxitos de Warren, considerando-se o fato de que havia 3.768 exemplares de meu livro sem vender que eram considerados demasiado insignificantes para serem postos em liquidação nas queimas de estoque de final de ano. Eu era uma ameaça ecológica.
Resultou que a número cinco tinha ainda menos êxito que eu. Só havia escrito um delgado volume de poesia abstrusa, que havia sido publicado por uma editora universitária do Meio Oeste com uma edição de quinhentos exemplares.
__Comentou um livro de poemas do suplemento literário do New York Times- explicou Warren David Warren--Interstícios ou Interlineal ou algo assim. Não me lembro. Eu não havia lido o livro. Mas a resenha era tão pretensiosa que quase vomito. Usou a palavra inelutável três vezes. Depois que li essa crítica, ela passou a encabeçar a lista diretamente.
É de se supor que Joanna Taubman-Lully jamais se deu conta do que iria se passar. Não estava alimentando-se dos melhores pastos. Muito pelo contrário. Seu livro, Canto de Pássaros, sequer poderia ser encontrado numa livraria, muito menos na vidraçaria. Havia que se pedi-lo pelo correio através do catálogo de livros por correspondência da universidade.
Então talvez tenha sido apropriado que seu fim lhe chegasse por correio. Warren lhe enviou uma carta de admirador com um auto-adesivo para o autógrafo e um outro envelope sobre este selado e com os dados do destinatário para o envio. Ela teria que autografar o auto-adesivo e devolvê-lo por correio. Naturalmente a carta chegou numa terça e ela assinou o auto-adesivo, o colocou no envelope, e lambeu a borda sem saber que havia ali um composto insípido e inodoro que se convertia num veneno de ação lenta uma vez combinado com a saliva.
Segundo o informe de Lilian Wong em Hard Copy, Taubman-Lully, quarenta e sete, morreu sete horas depois de lamber e postar o envelope em uma caixa de correio na esquina de Ocean Park e a rua Dezessete em Santa Monica, onde ela dividia uma pequena casa alugada com sua amante Jocelyn Brautman, vinte e nove anos, que a encontrou morta no chão da cozinha quando chegou em casa do trabalho; naquele momento, a evidência já havia sido recolhida e classificada no escritório postal de Santa Monica para ser enviada no dia seguinte a Warren David Warren.
__Diziam que eu queria que me prendessem. Todos estes psicólogos de TV com sua teorias de culpa inconsciente e ódio de mim mesmo. Não é por isso que me prenderam. Tiveram sorte.
“Não havia forma de eu saber que Gerry Kim iria apresentar-se para limpar a piscina de Gavin Frosbiher numa terça, entre as quatro e cinco da tarde. Eu já havia averiguado e sabia que o homem da piscina ia às quartas e sábados. Naquela semana em particular não podia ir na quarta porque seu cunhado precisava que ele o ajudasse a levar fertilizante de grama em sua camioneta, pois a de seu cunhado estava a trocar de motor.”
“Todo o restante eu tinha sob controle. Tinha uma forma de entrar no pátio. Sabia que Gavin Frosbiher trabalhava ao ar livre na últimas horas da tarde. Em Vanity Fair publicaram que ele gostava de trabalhar desnudo e pular na piscina a cada dez páginas.
Podes imaginar a expressão em sua cara quando trepei em cima do galpão de ferramentas com uma cópia de “A ponte a nenhuma parte”, essa merda que agora estão convertendo em uma película com Michelle Pfiffer.
“Ele agarrou a toalha e me olhou, ainda não havia se acostumado à idéia de que eu estava em seu pátio, vê o livro em minha mão e sorri. Que ego. ‘Tem a cabeça na guilhotina e pergunta ao verdugo se quer que assine o exemplar de seu livro antes que ele deixe cair a lâmina?’
“Veja, não me incomodo em autografar livros”, disse, “mas você não deveria ter entrado assim. É uma invasão de privacidade.”
“Eu levanto seu livro e digo: ‘Isto...isto é uma invasão de privacidade’.
“De imediato vejo medo nos olhos daquele homem. Ele deduz que se encontra na frente de um louco. Trata de alcançar o telefone portátil e eu o lanço na piscina com uma patada.”
“Quando se levanta, lhe cai a toalha e ele fica ali, de pé, desnudo, com o escroto parecendo um damasco seco. Volta até a casa, justo quando saco o blindlestich de meu bolso...”
Fiquei ali sentado, fascinado, envolvido com sua história. Ainda que soubesse como terminava, estava cativado. Warren David Warren era, como dizem nas capas dos livros, um narrador nato. Se lhe fosse dado um pouco mais de espaço para desenvolver-se, peguei me pensando como enquanto ele me explicava que um blindlestich é uma ferramenta suíça para consertar sapatos, um instrumento agudo de duas pontas que se usa para arrancar as costuras do couro.
Jamais pude saber como Warren planejava usar o blindlestich com Gavin Frosbiher porque neste momento Gerry Kim entrou com pelo portão para limpar a piscina. O som do portão se fechando distraiu Warren David Warren tempo suficiente para que Gavin Frosbiher abrisse a porta deslizante de vidro, entrasse correndo em casa e chamasse a polícia.
Gerry Kim disse a Geraldo que estava se limitando a fazer a tarefa de revisar o equilíbrio entre o cloro e o PH da piscina quando Warren passou justo ao seu lado e saiu pelo portão, e Frosbiher, que estava olhando pela janela da frente, anotou o número da placa do Honda Civic de Warren.
Prenderam Warren David Warren três horas mais tarde em seu apartamento em Culver City quando estava sentado comendo um burrito e vendo uma repetição de Eu quero Lucy. Se rendeu sem resistir à patrulha da SWAT do Departamento de Polícia de Los Angeles, que havia posto cordões de isolamento em toda a rua e colocado franco atiradores prontos para atirar nos tetos vizinhos.
Lilian Wong foi uma das primeiras a chegar à cena. Enquanto tiravam Warren do edifício e o público o vi pela primeira vez, ela disse aos telespectadores:
__Estou aqui numa tranqüila rua de Culver City, onde membros de uma força de tarefas combinada do Departamento de Polícia de Los Angeles e do FBI levam Warren David Warren, suspeito de ser o assassino de escritores...
__Se a camioneta do cunhado do tipo da piscina não tivesse precisado de um novo motor- murmurou Warren cheio de nostalgia- poderia ter dado cabo de Frosbiher...
Eram as últimas horas da tarde e o sol começava a ocultar-se detrás das montanhas. Em poucos minutos mais viriam para levá-lo de volta para pavilhão. Ele desapareceria atrás das portas fechadas a chave, onde o sedariam e deixariam frente à televisão juntamente com os outros, e eu jamais voltaria a vê-lo.
Essa tarde, quando cheguei, a doutora Midori me havia informado que esta seria minha última entrevista com Warren David Warren.
__Francamente, creio que agora estas sessões estão contra-indicadas- me havia dito, sentada atrás da mesa gris metálica debaixo de seu diploma da faculdade de medicina de Bombaim--. Tinha a esperança de que falando com um escritor ele de alguma maneira começaria a entender o erro de deus atos, mas parece que temos enfrentado uma reação oposta. Sua única mudança é que parece mais entusiasmado depois de falar contigo do que antes.
__Sério?--- disse, levantando uma sobrancelha.
__Sim. Sua demência chegou a tal ponto que ele crê que você de certa forma aprova o que ele fez.
__Incrível.
__Então, quando estava sentado nessa tarde com Warren David Warren sob a mortiça luz diurna, tratei de atar um dos cabos soltos.
__Como iria usar o bindlestich em Frosbiher?- lhe perguntei
__Como crês?
__Na garganta? Arrisquei
__Até o fundo- sorriu-. O mais fundo que pudesse chegar.
Olhei-o e assenti com um gesto. Se produziu entre nós um momento de perfeito entendimento.
__Quando tivesse chegado meu lugar na lista, como teria feito?
__Com elegância- ele disse
__Não esperaria menos.
__Quando sair daqui, irei te buscar—prometeu, com convicção.
__Isso é o suposto. Escreverei rápido.
Logo antes que o guarda o levasse, sussurrou:
__Pega o Frosbiher.
__Sem problema.
Meia hora depois, quando estava dirigindo rumo ao sul pela Cento e um, ouvi um entrevista na NPR de um motorista estrela de televisão que acabara de escrever seu terceiro Best-Seller. Fora feito uma primeira edição de quinhentos mil exemplares e já estavam por reimprimir, nas livrarias seus livros eram disputados a tapas. Decidi pô-lo mais acima na lista. Logo atrás de Frosbiher.


domingo, 16 de agosto de 2009

Blu

Artista plástico Argentino a meu ver excelente...

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Mais Vídeos

A facilidade de se postá-los somada à preguiça de escrever vai dar nisso, rarara

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quarta-feira, 12 de agosto de 2009

the hearts filthy lesson


domingo, 9 de agosto de 2009

sábado, 8 de agosto de 2009

Homenagem a Johan Huizinga

Em 1º de fevereiro de 1945, morria, na pequena cidade holandesa de De Steeg, confinado pelo exército nazista,

o grande historiador holandês Johan, Huizinga, nascido em 1872.

A entrevista que segue abaixo foi concedida pelo renomado historiador francês Jacques Le Goff a Claude Mettra, em 1980, quando uma outra edição francesa do livro tornou-se fiel a seu título original, Outono da Idade Média, antes, como em português o título era Declínio da Idade Média, Le Declin Du Moyen Age.

Posto que ela continua surpreendentemente viva e traz um olhar deveras profético, a obra maior de Johan Huizinga representa um território que cada geração descobre mediante um olhar diferente. No seu primeiro encontro com o público francês, ela surgiu sob a luz agônica que evidenciava em seu título inicial. O séc. XV era então visto como a noite escura que precede a aurora da Renascença. Totalmente outra é a visão de Huizinga, como demonstra aqui Jacques Le Goff nesta entrevista a Claude Mettra.

CM- O gde livro de J. Huizinga, “L`Automne du Moyen Age”, publicado nos Países Baixos em 1919, foi traduzido na França em 1932 e apareceu sob o título “Le déclin du Moyen Age”. A escolha de tal título é significativa, uma vez que se refere a uma visão cara a historiografia do séc. XIX: a Renascença nascida como um mundo novo, teria de surgir das cinzas do mundo antigo, um mundo velho, decrépito, precisamente no séc. XV que é o período privilegiado de J. Huizinga. E is que regressamos a “L`Automne du Moyen Age”. Mas qual Outono?

JLG- Sem dúvida Huizinga foi influenciado pelo livro de Spengler: “Le déclin de L`Occident” que foi muito mais criticado do que elogiado por ele. Contudo a tradução francesa do livro é uma traição. À primeira vista, “O Outono da Idade Média”, longe de ser uma desvalorização moral que porta a palavra declínio, nos instrui a beleza e a dimensão poética do livro. E esta poesia em última instância está refletida na tradução em toda a sua amplitude, pois toda a grandeza que J. Huizinga tem da história perpassa a palavra Outono.

O Outono é esta estação em que aparentemente toda a fecundidade e todas a contradições da natureza parecem exasperar-se. É nela que, na arte, Eugenio d`Ors chama de fase barroca, onde a natureza se manifesta nua, sem máscara, a exaltação das tendências profundas de uma época. Essa exaltação em si é fascinante. Pois, como canta Agrippa d`Aubigné:

“uma rosa outonal e mais que deliciosa”

Num tal momento da história, os contrastes surgem com extraordinária clareza, quando se pode compreender melhor o que é uma civilização, quando se tem em plena luz as tensões que lhe são implícitas.

CM- E seria no outono que se elabora a fermentação para a primavera que está para chegar.

JLG- Penso que se deveria perguntar a J. Huizinga qual seria a questão fundamental de seu livro, ele teria de falar sobre a imbricação íntima da Idade Média nisso que chamamos Renascimento. Pois a Idade Média do século XV é um autônomo exasperado, que traz ao lado de toda morte o seu contrário: uma extraordinária pujança de tal modo viva que continuará presente em pleno séc. XVI, como bem o mostra Lucien Febvre no seu Rabelais. Da mesma forma no séc. XV é o século seguinte que se faz perceber.

Em realidade, sabe-se o quanto Huizinga esteve no gene das periodizações imperativas que tiveram curso na pesquisa historiográfica. Os conceitos de Idade Média e Renascença são para ele formas vazias. Ele sabia muito bem que o problema estava além da repartição abstrata do tempo. Quando se atinge as camadas profundas da história, se percebe que há continuidades.

Há as camadas que insistem em se exasperar, outras em serem afáveis. Outras nascem lentamente; mal se enxerga a fonte. Em tal nível de profundidade, a periodização se torna impossível.

CM- E esta poderia ser a explosão implícita nos quadros temporais presentes no “Outono da Idade Média”, essa liberdade, essa atitude algo oceânica, mais em acordo com a sensibilidade de 1975 que à de 1920?...

JLG- De fato, o livro parece ser um pouco moderno em demasia para o momento em que apareceu, ainda que não tenha produzido o mesmo choque. Ou, tal finalidade da visão de J. Huzinga, e creio que a oportunidade de se obtê-la a partir de quaisquer palavras-chave que põem nua a natureza desta descoberta do passado.

E a bordo a palavra “vida”. Como testemunham os próprios títulos dos capítulos do livro: “O sabor acre da vida”, “A aspiração por uma vida mais bela”, “A arte e a vida”...É um dos temas que nos reporta a Lucien Febvre.

Mas o que significa essa fome de vida? Que em 1919 os historiadores que não eram marxistas e tampouco se julgaram herdeiros do positivismo puderam enfileirar-se diante de um certo vitalismo. Mediante a vida, eles tentaram incorporar a biologia à história, eles buscaram a presença do corpo vivo, dentro de um ambiente ele mesmo vivo. Na primeira página do livro, esta constatação, fundamental: “A doença e a saúde apresentavam um grande contraste”, e um pouco mais além, “A oposição entre a luz e as trevas, o silêncio e o barulho era ainda maior que hoje em dia”.

Em primeiro plano, a palavra “vida”: o uso do corpo, e dos sentidos.

CM- E em relação a esta relevância do cotidiano define-se por outro lado isto que está além do corpo, além dos sentidos. J. Huizinga vai fazer do sonho um personagem ativo da história.

JLG- A palavra mesmo de sonho se reencontra como aquela de visão, todas as vezes que J. Huizinga vem nos livrar da visão global dos homens da Idade Média. Há o sonho de heroísmo e de amor, herança da cavalaria; há a visão da morte, a presença constante das emoções, quer reveladas ou escondidas, e dos fantasmas. Há uma bifurcação psicanalítica que se encontra, na terceira palavra chave, após vida e sonho no Outono da Idade Média, a palavra Imagem.

Pois aqui tudo aquilo que é imagem é posto em primeiro plano. J. Huizinga se esforça por enfatizar a imagem e todo o campo imaginário em detrimento do que os marxistas chamam de infra-estruturas econômicas, por assim dizer. Para os marxistas tradicionais toda a representação do mundo pertencem ás superestruturas.

E aqueles que hoje nos confirmam as intuições de Huizinga não são os historiadores, são os etnólogos, feito Maurice Godelier por exemplo, que descobriu nas sociedades arcaicas um pensamento simbólico e as representações profundamente inscritas no desenvolvimento humano, que eles definem como infra-estruturas. E não é sem razão que com um pressentimento genial Huizinga se refere frequentemente à etnologia e às comunidades primitivas, ainda que seu conhecimento pareça confuso e seu comparatismo seja pouco crítico.

CM- A este olhar sobre o sonho está ligado um olhar sobre as quimeras e sobre o que hoje aprendemos a chamar de loucura. Sob certos aspectos a descrição que Huizinga faz da relação medieval entre os indivíduos e o sonho parece ir de encontro com o descontentamento das correntes anti-psiquiátricas atuais, representadas por Ronald Laing. Para ele o séc. XV deu ao individuo uma identidade pessoal inalienável. E a rispidez do Outono Medieval seria quase um anti-loucura.

JLG- Por muito tempo fomos batidos por pelo conceito de uma Idade Média desconhecedora do indivíduo. Esta é uma das falhas do belo livro de Eric Erikson sobre Lutero, pois ele vê o indivíduo tendo sua identidade formada a partir da reforma. Na verdade, no séc. XV, a relação entre indivíduo e grupo é singular.

A pessoa se constitui a partir da afetividade, sensibilidade e emoção, e é isto que estamos em via de redescobrir. Resta saber de que material dispõe um historiador para descrever tal afetividade. J. Huizinga se apoiou na literatura e na arte....Evidentemente, se houve alguma mudança depois de 1919, foi essa aproximação da literatura. Depois desse período a sociologia da literatura nos trouxe grandes luzes para a relação entre as obras e o real (?), como testemunha temos por exemplo o belo livro de Erich Kohler, “A Aventura cavaleiresca : ilusão e realidade no romance cortês”. Globalmente, J. Huizinga considerava a literatura como expressão da sociedade, até mesmo seu espelho conquanto com algumas dúvidas. Ele alega que a literatura é uma realidade entre outras, ainda que traga relações fortes de sentido com estas outras realidades.

No mínimo as obras fornecem o inventário de um certo número de fenômenos que hoje em dia a História considera fundamentais: o modo como as pessoas comiam, se vestiam, divertiam, brigavam, amavam. Desde então, os historiadores tentam fundar um “corpus” da realidade do tempo, o que Huizinga não pôde suspeitar. É necessário reconstituir, por exemplo, a partir de textos e da iconografia, o sistema gestual da Idade Média ou de um período da Idade Média. Mas esta é a questão. Em se buscando ajuda nos trabalhos dos etnólogos, seria possível uma aproximação das intuições de J. Huizinga: o fato de que deve-se ir longe em busca dos sentidos de representação de uma sociedade e do lugar que este sistema ocupa na estrutura da sociedade e na “realidade”.

CM- Na busca por representações J. Huizinga considera fundamentais a inteligência do corpo e do princípio sensorial. A vida se dava mediante o uso que o homem fazia da orelha, do olho, boca, mão, nariz. O Outono da Idade Média está repleto de sons, perfumes, e mesmo de carícias.

JLG- Como pode um historiador abarcar tal uso dos sentidos? Tarefas consideráveis estão em curso, em particular nas pesquisas sobre a representação do corpo feminino na literatura, nos tratados de medicina, em todas as fontes que são testemunhas.

Grosso modo, temos uma documentação profundamente mais vasta que a de que dispunha Huizinga. Resta lê-la. Um grande progresso esta sendo feito, graças aos historiadores e aos filósofos da história como Paul Zumthor e Michel Foucault adeptos da noção de documento-momento. Contrariamente ao que cria a história positivista, o documento não é um material que se encontra ao acaso: ele detém o segredo de uma época, as razões precisas, voluntárias e involuntárias, e não podemos utilizar deles sem antes analisarmos seu lugar e função no sistema social em seu conjunto.

Resta que não sabemos como encontrar o documento-momento. Em seguida, há os silêncios da história, pois uma sociedade funciona silenciando-se sobre uma parte de si mesma.

CM- E as pessoas também funcionam da mesma maneira.

JLG- A relação do historiador com os silêncios é extremamente significativa.

O silêncio, essa foi uma das grandes descobertas de Michelet. Mas ele a interpretou à sua moda: ele o via sobretudo como o espelho da opressão. O silêncio, este seria a palavra totalmente reduzida, e com uma visão por sua vez passional e perigosa da História como ressurreição integral do passado, ele quis, intuitivamente, preencher os silêncios. Mas ele os preencheu consigo mesmo, pois ele tinha uma personalidade devoradora. Sendo assim, se se conhece Michelet, seus delírios, sua obsessões, vê-se os silêncios preenchidos por sua própria paixão, eis o que o historiador deve render à obra de Michelet. De onde a importância do ensaio de Barthes, para nós, leitores críticos da história da França.

Todavia por trás de todos os silêncios esconde-se o psiquismo profundo de uma sociedade. Como decifrá-lo? Aqui o historiador fatalmente penetra nos territórios da psicanálise. E é fato que J Huizinga, particularmente, logo que dá a melancolia um papel privilegiado, pois a partir da melancolia ele escreve (<<>>), e desnuda um conceito intelectual e artístico solidamente ancorado na sensibilidade intra-biológica da época.

É isto o que conduz Huizinga a bordo da psicanálise, este erotismo. É isto que é assaz assustador em 1919, e explica largamente o fato de J. Huzinga pertencer a uma cultura, aquela dos antigos Países Baixos (que é também a mesma de outro grande historiador dessa geração, Henri Pirenne, viva nas paisagens, nas imagens de Bosh e de Breughel), de uma terra tradicionalmente aberta a esse tipo de curiosidade.

É isso que permite a J. Huizinga descobrir o fundamento erótico no espírito de coragem da Cavalaria. Ele compreende assim como a ética coletiva pode ter por fundamento seu próprio recalque. E qual seria o do séc. XV? As pessoas tinham uma noção muito viva do corpo, viviam sua sensualidade. Se houve recalque, foi num outro nível.

Por compreendê-los, ele pode buscar ajuda de certas análises weberianas. Uma das idéias fundamentais de Max Weber, que estuda a relação entre capitalismo e protestantismo, é a seguinte: em se tolhendo as energias de se desdobrarem no campo do prazer, através da sensualidade, o protestantismo as canaliza para o trabalho, ao crescimento econômico, para o desejo do ganho.

Durante muito tempo, a Idade Média obteve êxito em integrar o recalque a uma certa liberdade dos sentidos. Esse êxito se deve ao fato de que o Cristianismo medieval se ter revelado capaz de unir duas modalidades de religião: a religião popular e a dos clérigos que por sua vez tendia a ser uma religião racionalizada.

Ou, no final da Idade Média, essa união areja-se(briser). Eis o triunfo da religião institucionalizada, racionalizada. Isso será ainda mais verdadeiro no século XVI, tanto para o catolicismo quanto para o protestantismo. Por conseqüência a religião popular não mais está integrada, é oprimida, não mais um modo de se exprimir a magia.

CM- E se volta assim para a feitiçaria.

JLG- Sim, a relação entre a nova religião racionalizada e outra popular tornou-se demente, condenada à loucura, exprimiu-se através da feitiçaria e de sua repressão, uma vez que a feitiçaria só existe se houver repressão.

Nesse sentido o séc. XVI é um período limítrofe e J. Huizinga tem uma visão muito clara das tensões extremas e de seus contrastes que irão provocar as grandes revoluções. É mediante essa ruptura entre as duas formas de religião que J. Huizinga toma consciência das duas formas de sublimação que habitam a Idade Média ao seu final: de um lado a fachada religiosa dos clérigos e se há uma fachada somos reenviados ao crivo psicanalítico; e do outro lado a aspiração a uma vida mais sublime através do erotismo.

É isso o que desconcerta num olhar sobre a sociedade medieval, é isso que J. Huizinga, no seu intuito de chegar às profundezas, de se lançar ao outro, descobre o séc. XV como o etnólogo descobre a sociedade arcaica, com o sentimento de quem é estranho ao seu objeto, de quem não o compreende. Trata-se de uma humildade absolutamente nova na pesquisa histórica.

CM- Um dos aspectos mais desconcertantes e controversos da paisagem medieval descrita por J. Huizinga, é por em questão o simbolismo medieval. Ele percebe, mediante um deslizamento do simbolismo à alegoria, um sistema de decadência, como se as imagens tivessem perdido sua significação dinâmica, e não passassem de formas frias, sem enlace algum com a sensibilidade da época.

JLG- O horizonte do simbolismo medieval é encontrado, desde então convulsionado, renovado, em particular pelos historiadores da literatura, como em Jollès e seu estudo sobre as formas simples e Paul Zumthor em seus ensaios sobre poética medieval. Em pouco tempo apareceram cinco livros sobre o romance da rosa, e todos propõem uma reabilitação da parte propriamente alegórica de Guillaume de Loris, que, em relação àquela de Jean de Meung, era considerada muito formalista e desprovida tanto de poesia como de conteúdo.

Tem se dado conta de que o universo alegórico, longe de ser um espelho do gratuito, corresponde a uma verdade estética. Certamente, esta cultura livresca é uma cultura de clérigos, resta saber como ela foi recebida, consumida, e como um sistema de representações elaborado em meio aos melhores e mais privilegiados pôde, ao nível do povo, servir de fonte de nutrição no plano imaginário.

CM- Não me parece que o simbolismo tenha se tornado agonizante ou gratuito em momento algum no séc. XV, pois ele se manifesta com esplendor durante toda a primeira Renascença, e teve sem dúvida um papel muito forte nas ressurgências do mundo antigo.

JLG- É o que sublinha J. Huizinga ao final de seu livro: <<É da alma da Idade Média em si que surgiram os novos tempos, e apenas agora isso é reconhecido. A Antiguidade não teve papel um papel representativo em seu início- o da IM. A Antiguidade não teve, ao um papel, tão >>. Em verdade a referência à Antiguidade feita pelos homens da Renascença não passou de um estratagema para que exprimissem um certo número de descobertas e descontentamento contra a rotina. Eles se serviam do passado para testemunhar sua própria novidade, e estavam bem presos nessa armadilha. É dentro deste contexto que se pode medir o quão abusivo é nomear a esta época de Renascença, e quanto de efetivo se opera em tal termo, tanto que Jacob Burckhardt, que tanto admirava Huizinga, deveria ser revisado.

Pois a originalidade de uma época não pode ser definida pelo retorno que se obtém de um grupo de intelectuais debruçado sobre uma época antiga: há as continuidades históricas. E a chave de um período não pode jamais estar presa há dez séculos antes, obliterando-se tudo o que há no intervalo. Naturalmente, para se compreender o que é esta nossa civilização, há que se remontar desde o neolítico, mas remontando continuamente, sem saltar séculos inteiros.

Para se compreender o que se deu no momento da Renascença, não é necessário procurar em Roma ou na Atenas de antanho, mas observar o que se encontra imediatamente antes.

Há um exemplo particularmente alarmante. Atribui-se à Renascença o nascimento do capitalismo, a consideração pelo trabalho. Essa sacralização do trabalho exprime-se com força na maldição que pesa sobre a mendicância regulamentar, daquele que poderia trabalhar e prefere viver como parasita do trabalho alheio. O mendigo regulamentar está pregado ao pelourinho, não só nos países protestantes, mas também nos países católicos.

Ou o momento em que esta figura social em particular é rotulada é o séc. XV, mas ela nasce no XIII. Estudos recentes sobre os amantes vagabundos e os mendigos hereges, aqueles de Jean-Claude Schmidt, o demonstram claramente. Entre esses marginais, ainda mais perigosos eram os religiosos, a igreja do séc. XIV os qualifica como hereges. Esta era a etiqueta de exclusão da sociedade, no séc. XV eles se tornam igualmente exclusos, ainda que qualificados desta feita de mendigos oficiais. É no coração do Outono da Idade Média que se forja o estereótipo que conhecerá um grande renome nos tempos modernos.

CM- J. Huizinga fala da Idade Média no seu conjunto. Não se poderia sendo assim perguntar se a Idade Média de seu interesse não seria aquela dos Países Baixos, e mais amplamente a atmosfera territorial flamenga ou borgonhesa?

JLG- Não há um subtítulo na obra de J. Huizinga do tipo cidade Neerlandesa, França e Países Baixos, o livro é sobre a unidade cultural da época, a saber, a cristandade. Neste mesmo período na Itália ou em Languedoc, encontra-se basicamente a mesma ideologia dominante, aquela representada pela Igreja, e as mesmas estruturas sociais. Mas a paisagem cultural e mental é todavia totalmente diferente. E nessa busca por uma história das profundezas, faz-se mister perceber como uma mesma cultura, com todos seus sofrimentos, revela uma extraordinária diversidade.

É isto o que nos faz perceber em meio a esta diversidade o raio comum que as fundamenta em todos os movimentos regionalistas. Percebe-se bem hoje em dia que as entidades sociais são as herdeiras de um longo passado enraizado em um país particular, um passado de natureza regional, que escondem mais ou menos, e sob períodos mais ou menos longos, uma história unificante.

De um outro golpe, alhures, percebe-se melhor os limites da reivindicação regionalista. Se não se tem em conta que a raiz regional, que foi golpeada, reduzida ao silêncio, ignora-se todo o peso da história unificante. Aquela que Michelet põe em cena quando empreende a descrição da França como uma personagem geográfico-histórica nascida da aglomeração sucessiva de diversas províncias. Aqui, há um pouco o movimento contrário: J. Huizinga pôs em cena uma certa experiência histórica da Cristandade como um todo.

Portanto estamos a reler Huizinga sob uma perspectiva atual E nos lembremos que, antigamente, ele rasgara o véu de uma história orgulhosamente impassível e que para nós, se ele pode ser para os seus próximos, com seu esteticismo, seu diletantismo, um mestre do erro, é ainda um abridor de portas que conduz à história do porvir.